RICARDO DOMENECK
FIM-DE-ANO NA CADEIRA-DE-BALANÇO
Foi o ano em que todos nós morremos
um pouco, claro que pouco a pouco
morríamos todos e olhávamos
já com cuidado
uns para os outros,
e passamos a perguntar:
“será você
o próximo?
serei eu?”
pela manhã contávamos os vivos
pois já era mais fácil do que contar os mortos,
tirávamos do caminho
uns dos outros
as pedras, as cascas de bananas,
apontávamos escadas íngremes e degraus longos
e nos agasalhávamos com um pouco mais de afinco
por estas épocas foi que começamos
a nos lembrar com nostalgia
de um tempo
mais simples
quando não tínhamos
jamais usado palavras como vindima
ou verbos como devir,
não sabíamos
o que era um Dalai Lama
e ambição era poder comprar colchão mole
em vez de duro no açougue,
todas as vacas e frangos e porcos eram felizes,
só por fotos
e extintos estavam só os fogos
na mata e os dinossauros,
mas há tanto tempo
que não os contávamos mais
para a economia doméstica.
Tivemos afinal aquelas primeiras lições
da fauna caseira,
as lagartixas perambulando pelas paredes
enquanto a família ouvia Cid Moreira
relatar as desgraças da República,
e pais e mães e filhos descansavam
de vez em quando a atenção das notícias
com a caça das lagartixas
aos mosquitos e às varejeiras.
Entendia-se a cadeia
alimentar, a família
torcia
pelos répteis como pelo Corinthians
e quando a lagartixa abocanhava a mosca
sentiam alívio até as panelas na mesa:
o resto da janta esfriando na cozinha
podia ser requentado
sem sobressaltos para o almoço.
Mesmo assim assistia-se à matança
com um pouco de inveja
ressentida das moscas, tinham asas,
escapavam mais fácil
do que nós. Não era hierarquia
de classes,
alguns dos insetos
e alguns dos mamíferos
da casa dividiam as colheitas,
com as formigas em marcha por cantos
e quinas firmara-se um tratado de paz
desde que não surrupiassem o açúcar
e mantivessem suas patas longe do mel,
tão caros,
e se aos camundongos
reservava-se o veneno, convivia-se
com os grilos, e os bem-te-vis bicavam os abius
e as goiabas no quintal, os cães matavam, é verdade,
muitas minhocas em suas escavações arqueológicas
mas sempre sobrava para os primatas
suficiente para vitamina, doce e suco.
guiava-se o sapo
até o bueiro com a mangueira,
com a vassoura só se alguma briga
por dinheiro tivesse perturbado a paz das paredes
da casa com suas manchas, fazendo aflorar
nossa crueldade escrita nas espirais dos genes,
aquela que levava os meninos da rua
a saírem com varas de pescar no asfalto,
agitando-as rapidíssimas para confundir os radares
dos morcegos, matando-os.
era amado e respeitado por todos, ainda que também temido,
mas generoso olhava o dilúvio
minúsculo das cidades do interior, mastigava
seu macarrão.
Jesus estava vivo, Iemanjá doava o que podia,
estavam vivas as avós,
o Brasil era nosso,
eram puros e infindáveis o petróleo e a água.
de alianças, a fauna caseira aguava
na estiagem a flora, os cães
dependiam dos primatas, atraíam as moscas
todos os bichos peludos da casa, da mãe ao cão,
e sempre torcia-se pelas lagartixas
em caça às moscas e em fuga dos gatos.
Tudo dava cria:
os primatas, os cães, os gatos, os morcegos, os sapos, as lagartixas e as moscas
repondo o que se perdia numa sucessão que nos iludia,
idiotas da fartura eterna como se questão de tempo apenas
para que os mortos voltassem todos na pele de filhotes nossos,
éramos todos felizes, não havia
Dalai Lama, rinocerontes ou dinossauros
nas redondezas, nos espantávamos com fenômemos
simples como aquele dia em que uma legião
de tanajuras
invadiu o céu da cidade, havia vagalumes
no campo
e pescar tinha uma coisa de vida ou morte,
cercados que éramos por sucuris e piranhas.
Respeitava-se a cadeia, não se tentava
a pirâmide a provar que era séria e eficiente.
Mas sabemos hoje que tínhamos passado os olhos
rápidos demais sobre os desastres da República,
que Cid Moreria 1 selecionava os lutos
e custava muito às moscas alimentar
nossas lagartixas, o bife no prato sofrera
do parto da vaca ao matadouro
que a República
tinha sido desde o começo e antes
e que morrer e matar aos poucos
era já morrer e matar demais.
Hoje, depois,
sabemos que sobre famílias
apropriado seria escrever a carvão,
garatujas sobre a pele esticada e ressequida
das vacas e frangos e porcos
que cederam suas carnes
para a sucessão de almoços e jantas
que nutriram esta coletânea de fotos
tão dignas de notas-de-rodapé
quanto a sucessão de presidentes e ministros.
Mas as alegrias continuaram em verdade simples
mesmo que nossos parâmetros nunca se convençam
entre elevar-se ou rebaixar-se, e no fundo as bolsas
que temos medo que caiam
são apenas aquelas que podem revelar
algum segredo pessoal ou familiar
nas calçadas da avenida ou do passeio público,
tão experiente nos desastres da República
como Elza Soares 2
cantar que cantaria até o fim, então erguemos
as vozes roucas
e prometemos o mesmo, cantar até o fim
também elas cantarão até o fim,
e as abelhas zuniram em sua queda populacional,
os pés de muitos sim machucados
na avenida, cães e primatas sem casa,
os estandartes confundindo-se com faixas
porque o samba-enredo não muda, entra ano sai ano,
é um pedido confuso,
dá-nos Jesus e dá-nos Barrabás
com os dois debateremos que antes de Deus e César
queríamos dar ao filho, ao amigo, ao vizinho,
rezando apenas que esta balança que pende sempre para um lado
torne-se um balanço em que nos empurraríamos
uns aos outros
nos ares dum parque de diversões gigante
e que Nero não precisa incendiar Roma
pois nós mesmos já estamos com os fósforos nas mãos
e batucamos na caixinha enquanto seguimos
cantando até o fim do mundo
com as baleias e os cães
e nossos irmãos e nossos primos entre os primatas.
Berlin, 28–31 December 2016
YEAR END BALANCE
It was the year when we all died
a little, of course all of us died bit
by bit and we were looking
warily now
at one another
and wondered aloud:
“will you
be next?
will I?”
In the morning we counted the living —
easier by now than counting the dead —,
and we cleared stones and
banana peels
out of each other’s way,
pointed out steep stairs and high steps,
and bundled up with a little more diligence
for these times when we began
to recall with no small nostalgia
a simpler time
when we’d never used
words like vendange
or verbal phrases like come into being,
nor did we know
who the Dalai Lama was,
and our greatest ambition was to buy hanger
instead of flank at the butcher’s, and
all the cows and chickens and pigs were happy;
but only in photos,
and only forest fires and
dinosaurs were extinct,
but it had been so long
they no longer figured
in our domestic economy.
Finally, we learned those first lessons
from household fauna —
geckos in promenade on the walls —
while the family listened to Cid Moreira
enumerate the misfortunes of the Republic,
and fathers and mothers and children from time
to time stopped paying attention to the news
and watched a gecko hunt
mosquitos and bluebottles.
The food chain fully apprehended, the family
rooted for the reptiles as for Corinthians,
and when gecko snatched fly
even dishes on the table felt relief:
leftovers cooling in the kitchen
would be reheated without undue
surprise for tomorrow’s lunch.
Even so, the slaughter was viewed with some
small resentful envy, for the flies
had wings and escaped more readily
than we. There was no class hierarchy,
some of the insects
and some of the mammals
in the household shared the harvest,
and a peace treaty was signed
with ants on march through nooks
and crannies, as long as they stole no sugar
and kept their claws away from honey,
both so dear,
and if we did keep poison
for mice, all shared life
with crickets, while great kiskadees pecked at yellow
star apples and guavas in the yard, and, yes, dogs
murdered myriad worms during archaeological excavations,
but for us primates there was always enough
left for our vitamins, sweets and juice.
a toad was urged to the ditch with a hose
or a broom, only if some pecuniary
altercation had disturbed the peace and blotted the walls
of the house, which provoked the bloom
of cruelty written into the spirals of our genes,
which led the boys on our street
out to the asphalt with fishing poles . . .
they shook them rapidly to confuse the radar
of the bats, and then they killed them.
was loved and respected by all, even if also feared,
but his beneficent gaze was on the tiny
deluge of inland cities, and he chewed away
at his noodles.
Jesus was alive, Iemanjá bestowed what she could,
all grandmothers were alive,
Brazil was all ours, and
water and petroleum were pure and inexhaustible.
of kinship: household fauna watered
depended on primates, flies were drawn to
all the house’s hairy beasts, from mother to dog,
and we always rooted for the geckos
hunting flies or fleeing cats.
Everything gave issue:
primates, dogs, cats, bats, toads, geckos, flies,
thus replenishing what was lost in a sequence that misled us
fools into our belief that the bounty had no limits,
as if it were a mere matter of time
for the dead to return in the skin of our whelps,
all were happy, there was no
Dalai Lama, no rhinoceroses or dinosaurs
in the neighborhood, we were astonished
by the simplest phenomena, like on that day
when a legion of leafcutter queens
invaded the skies of the city, and there were fireflies
in the fields, and fishing had something
to do with life or death, surrounded
as we were by anacondas and piranhas.
The great chain respected, no attempt was made
to prove the pyramid solid and efficient.
But today we know we’d merely glanced
over the disasters of the Republic,
that Cid Moreira decided our bereavements,
that it cost our flies so much to feed
our geckos, that beef on the plate suffered
from birth to the butcher
the Republic had always been
long before the beginning,
and that dying and killing bit by bit
have always been dying and killing
much too much.
Today, after all of it,
we know it would be fitting
to write about families in charcoal
scrawls on the stretched and dried skin
of the cows and chickens and pigs
who surrendered their flesh
to the succession of lunches and dinners,
who fed this collection of photos
just as worthy of footnotes
as the succession of presidents and ministers.
But the joys endured, so truly simple,
even if our standards are always undecided
between rising or falling, and, just as truly, the stocks
we are so afraid will fall
are but those as can reveal
some personal or family secret
on the sidewalks of the avenue or public footway,
so experienced in the disasters of the Republic
as Elza Soares
sing that she will sing till the end, and thus let us raise
our hoarse voices
and promise the same, to sing till the end,
they too will sing till the end,
and bees will buzz, despite populational collapse, and
the feet of so many so bruised
on the avenue, homeless dogs and primates,
banner confused with standard,
for the samba-theme never changes, year in year out,
the same confused entreaty,
give us Jesus and give us Barrabas
that we may debate the two: rather than unto God and Caesar
we would give unto the child, the friend, the neighbor,
praying only that the scale which hangs ever lopsided
become a swing for us
to push one another
in the airs of a giant playground
and that Nero need not burn Rome
for we hold all the matchboxes
and we shake them in time while we follow along
all singing till the end of the world
with the whales and with the dogs
and all our kith and kin among the primates.
Berlin, 28–31 December 2016