adriane garcia & sérgio fantini

ADRIANE GARCIA & SÉRGIO FANTINI, editores

CONTOS PARA FUTURO NENHUM
introdução

O mundo sabe que o Brasil acaba de eleger um candidato de extrema direita. A campanha eleitoral deste 2018 foi o clímax de um estado de ânimo que começou com as Jornadas de Junho de 2013, iniciadas por uma reivindicação local (diminuição do custo da passagem de ônibus na cidade de São Paulo) que tomou proporções nacionais e outros vieses graças à manipulação da mídia. Naquele momento, começava a ficar mais claro para os bons observadores que a sociedade, grosso modo, vinha se transformando de uma forma assustadora. A ignorância demonstrada sobre a história, a política, a cultura e todas as pautas humanistas passou a ser ostentada como uma bandeira; o culto a elementos há muito dados como danosos à sociabilidade, como a homofobia, o racismo, a xenofobia, o machismo e a misoginia passou a pautar as atitudes das pessoas: amigos, familiares e colegas de trabalho começaram a se estranhar em sua rotina. As instituições todas revelaram conter em suas entranhas quadros corruptos e bastante dispostos a desrespeitar as leis para obter vantagens as mais espúrias possíveis. Por fim, o Estado brasileiro assumiu uma postura antidemocrática e partidária como nunca se viu.

Os artistas não foram insensíveis a este movimento. Muitos se posicionaram claramente e colocaram sua arte e seus corpos à disposição da vida, e assim estamos resumindo vida em sociedade fraterna em uma situação política democrática e justa.

Em setembro, com a iminência da eleição de Jair Bolsonaro, dada pelas pesquisas, a poeta Adriane Garcia criou o projeto “Minicontos para futuro nenhum”: ela própria deu a partida e deixou em aberto que seus amigos, via redes sociais, contribuíssem. O tema deveria ser, claro, como será a vida em um Brasil sob a presidência de um governo excludente, militarista, armamentista e preconceituoso. Aqui estão quatorze autores e suas quatorze previsões para um terrível futuro.


SHORT STORIES FOR NO FUTURE

introduction

The world knows that Brazil has just elected a far-right candidate. This 2018 electoral campaign was the climax of a state of mind which began with the June Days in 2013, initiated by a local demand (lowering the cost of bus fare in the city of São Paulo), which took national proportions and other biases, thanks to the manipulation by the media. At that time, it became clearer to good observers that, roughly, society was being transformed in a fearsome way. The demonstrated ignorance about History, politics, culture, and the humanist agenda altogether, started to be brandished as a flag; the cult to elements long considered harmful to sociability, such as homophobia, racism, xenophobia, male chauvinism and misogyny began to punctuate people’s attitudes: friends, family members and coworkers began to collide with one another in their daily lives. The institutions all revealed holding corrupt frameworks in their entrails, greatly willing to disregard the laws to obtain advantages as spurious as possible. Finally, the Brazilian State took on an anti-democratic posture as never before seen.

Artists were not insensitive to this movement. Many took a clear stand and placed their art and bodies to the service of life. As such we are outlining life as a fraternal society in a democratic and fair political condition.

Last September, given the polls results and the imminent election of Jair Bolsonaro, Brazilian poet Adriane Garcia created the project “Minicontos para futuro nenhum” – Short Stories for No Future: she set it in motion herself, and made an open invitation to her friends on social media to contribute to it. The theme should be, of course, how life will be in a Brazil under the presidency of an excluding, militaristic, armament-oriented, and prejudiced government. Here are fourteen authors and their fourteen predictions for a terrible future.


ÁDLEI DUARTE DE CARVALHO (Belo Horizonte/Minas Gerais)

A bola foi dar, novamente, no milharal do Jeremias. Isso sempre acontecia nos finais de semana, quando os meninos desciam para jogar no descampado. Sempre dois ou três atravessavam a cerca, à surdina, para resgatar o brinquedo. Sempre bêbado e ranzinza, o Jeremias corria atrás, desengonçado, até que tropeçasse nas pernas e estatelasse no chão. Os garotos sempre riam, faziam troça, depois sumiam.
Desta feita, entretanto, o Jeremias havia conseguido adquirir uma arma de fogo, porque, nos registros da repartição, sempre fora um “cidadão de bem”.
Nunca o vilarejo vira um féretro tão pequenino e triste.

The ball ended up, again, in Jeremias’ cornfield. It always happened on the weekends, when the boys would go down to the clearing to play ball. Always two or three of them would cross the fence, stealthily, to rescue the toy. Always drunk and grouchy, Jeremias would clumsily chase them until he tripped over his own legs and crashed to the ground. The boys would always laugh, poke fun, then vanish.

This time, however, Jeremias had managed to purchase a firearm, because – according to the records at the division, he had always been a “good citizen”.

Never had the village seen a coffin so little and sad.


ADRIANE GARCIA (Belo Horizonte/Minas Gerais)

Douglas e Sheila se despediram de Lucas. Tarde para chorar. O Brasil não se transformava na Venezuela. Transformava-se nas Filipinas. O novo presidente batera continência para a bandeira dos Estados Unidos e não fora à toa. Boas relações, apesar da oposição interna e do asco da comunidade internacional. Em outubro mesmo, já chegavam os primeiros tanques. A ordem era o Brasil invadir a Venezuela e retirar Maduro. Os casais que apoiaram o novo governo experimentavam a dor inédita de enviar um filho para a guerra.

Douglas and Sheila bid Lucas farewell. Too late to cry. Brazil was not being transformed into Venezuela. It was transforming into the Philippines. A new president had saluted the flag of the United States, and it was not for nothing. Good relationships, despite internal opposition and the disgust of the international community. In that very October, the first tanks were already arriving. The order was for Brazil to invade Venezuela and remove Maduro. Couples who supported the new government were now experiencing the unprecedented pain of sending a son off to war.


ALEXANDRE BRANDÃO (Passos/Minas Gerais)

Estava feliz com o resultado das eleições, a corrupção havia sido varrida da história. Motivo para tirar a cerveja da geladeira e, ainda que sozinho, brindar.

Acomodava-se no sofá, quando a campainha soou. A correspondência veio selada, com carimbos e assinaturas. A mensagem era clara: “o Estado, agradecido pelo voto, proclama ao exmo. sr. Fulano de Sicrano, homem de bem, que dê fim ao negro abaixo identificado”.

Happy with the election results, corruption had been swept out of history. Reason to get the beer out of the fridge and, even if by himself, celebrate.

He was getting comfortable on the couch when the doorbell rang. The correspondence came sealed, with stamps and signatures. The message was clear: “the State, thankful for his vote, proclaims to dear Mr. John Doe, a good citizen, to finish the black male below identified”.


ALOÍSIO SÁ (Belo Horizonte/Minas Gerais)

O professor entra na sala e logo pede aos alunos para abrir o livro na página 13. Uma foto do general 4 estrelas ilustra um texto sobre a ditadura no país. Antes mesmo que ele pudesse iniciar a aula, Serafim coloca o 38 sobre a carteira, abre o livro na página indicada e a arranca. É seguido pelos colegas. O professor faz menção de criticar o gesto, ouve-se o estampido. O professor foi alvejado na cabeça, pedaços do seu cérebro colaram no quadro negro, agora colorido de vermelho. O sinal toca, os alunos são dispensados. O conteúdo daquele dia estaria disponível na internet antes que a tarde chegasse.

The teacher enters the classroom and shortly asks his students to open their book on page 13. A picture of the 4-star general illustrates a text on the country’s dictatorship. Before he could even begin the class, Seraphim puts a .38-caliber on the desk, opens the book on the page indicated, and rips it out. He is followed by his classmates. The teacher makes mention of criticizing the gesture, a bang is heard. The teacher was shot in the head, pieces of his brains glued onto the blackboard, now colored red. The bell rings, the students are dismissed. The contents of that day would be available on the internet before the afternoon would arrive.


CARLANDREIA RIBEIRO (Belo Horizonte/Minas Gerais)

As lojas já oferecem os anacrônicos enfeites de Natal. As famílias de bem já deram início aos preparativos para a chegada do Deus-menino. Esse ano será especial, Papai Noel virá em seu trenó puxado por milhares de bolsorrenas. Surgirá nos céus do Brasil tal qual besta do Apocalipse, o tropel poderá ser ouvido a quilômetros. As criancinhas estarão ansiosas e correrão pelas ruas gritando: Papai Noel, Papai Noel, me dá uma bala, manda bala pra nós, Papai Noel!

Atendendo ao clamor infantil, lá do alto ele enviará suas balas. Calibres 22, 38, 40, 380… Mas,alegrem-se, o Menino-deus está prestes a chegar! Presépio montado, na manjedoura sorri imóvel um menino Jesus embranquecido, cercado por seus pais também imóveis e embranquecidos e alguns animaizinhos também inertes. As ceias finalmente estarão nas mesas: arroz de forno, peru, farofa e maionese, tudo com muita uva-passa (nas periferias); caviar, trufas, folhas de ouro, bife Wangyu, melancia japonesa (na zona sul).

Quando baterem as doze badaladas, todos brindarão efusivos. Desde o delicado tilintar das taças de cristal nos condomínios e mansões até a estridente fricção dos copos de requeijão nos bairros populares.

Mais uns dias e chegará o Ano Novo. Farofa, pernil, chester, champagne, vinho Sangue de Boi, mais champagne, caviar e trufas… O relógio dá meia-noite. Novamente o tilintar das taças de cristal, a estridente fricção dos copos de requeijão, pular sete ondinhas, todos vestindo o branco da paz… o branco da paz? Alguém já disse que a paz é branca. Para Pessoa é uma pomba estúpida.

1º de janeiro de 2019, o Menino-deus se fez adulto; embora continue embranquecido, já tem idade bastante para ser crucificado (por que diabos insistem tanto naquela pele branca e naqueles olhos azuis?).Porém, aqui, no Planalto Central, no coração do Brasil, o Messias é outro. Anunciado pelos grupos de Whatsapp e glorificado pelas fakenews, finalmente ele subirá a rampa. Enquanto o Brasil escorre ladeira abaixo, a parte branca do Brasil permanecerá em seus condomínios e mansões. O resto, o povo, iniciará um calvário e muitos morrerão no Pelourinho de Pampulha(*). Ah, o doce perfume das Pampulhas!

Mas, alegrem-se, hoje é o dia da Confraternização Universal! Trump já tem aqui os seus representantes trabalhando pelo seu bem-estar.
Feliz Ano velho! Bem-vindos novamente a 1964!

(*)A expressão foi cunhada por Gil Vicente, em A barca do inferno. Quem a diz é o personagem Parvo, que representa o povo. Pampulha é também uma lagoa e um bairro de Belo Horizonte.

Retailers are already offering the anachronistic Christmas ornaments. The respected families have already begun preparations for the arrival of baby Jesus. This year will be a special one, Santa Claus is coming in his sleigh pulled by thousands of bolsodeers. It will appear in the skies of Brazil like a beast of the Apocalypse, hoofbeats will be heard miles away. Little children will be excited, running in the streets and shouting: Santa, Santa, give me chocolate ammo, send us chocolate ammo, Santa!

Responding to the children’s clamor, he will send ammo from above. Calibers .22, .38, .40, 380… But, rejoice, Baby Jesus is about to arrive! The nativity scene is set, in the manger a whitened baby Jesus motionlessly smiles surrounded by his parents, also motionless and whitened, and a few little animals, also inert. Christmas dinners will finally be on the tables, oven-baked rice, turkey, farofa, potato-mayo salad, all with lots of raisins (in poor neighborhoods); caviar, truffles, gold leaf, Wagyu beef, Japanese watermelon (in suburbia).

When the clock strikes midnight, all will effusively make a toast. From the delicate clinking of crystal glasses in the condos and mansions to the strident clanking of mason jars in the working-class neighborhoods.

A few more days and New Year’s Eve will arrive. Farofa, veal, Chester, champagne, Sangue de Boi wine, more champagne, caviar, and truffles… The clock strikes midnight. Once again, the clinking of crystal champagne glasses, the strident clanking of mason jars, jumping over seven little ocean waves, all wearing white for peace… white for peace? Someone once said that peace is white. To Fernando Pessoa, it is a stupid dove.

1st of January 2019, baby Jesus is now a grown man; while still whitened, he is old enough to be crucified (why in the hell do they insist so much on the white skin and those blue eyes?). However, here in the Brazilian Highlands, in the heart of Brazil, the Messiah is another. Announced by WhatsApp groups and glorified by fake news, he will finally walk up the ramp. While Brazil drains down the slope, the white section of Brazil will remain in their condos and mansions. The rest, the actual people, will begin a plight and many will die in Pelourinho de Pampulha(*). Oh, the sweet perfume of the Pampulhas!

But, rejoice, today is World Get-Together Day! Trump already has his representatives here, at work for his well-being.

Happy Old Days! Welcome back to 1964!

(*) The expression was coined by Gil Vicente, in A barca do inferno. Parvo, the character representing the people is the one who says it. Pampulha is also the name of a lake and of a district of Belo Horizonte.


CARLOS ANTONHOLI (Araras/São Paulo)

2021: uma ilha, cento e cinquenta quilômetros ao sul de uma Barra da Tijuca aniquilada por alguns eleitores arrependidos e uma forte oposição ao presidente da república, todos reunidos para “esvurmar” os culpados, grande parte agora refugiados por medo, vergonha pela situação em si, isolados (até deus sabe quando) naquele aglomerado dos novos miseráveis. O que era uma elite de fato em sua bolha endinheirada, agora está literalmente ilhada em um enorme aterro sanitário decorado com obras de Romero Britto.

2021: an island one hundred and fifty kilometers south of a Barra da Tijuca devastated by a few remorseful voters, and by a strong opposition to the president of the republic, all united to “squeeze out” the culprits, the great majority now refugiated for fear, shame of the situation, isolated (God knows until when), in that cluster of the new miserable. What used to be an actual elite in their wealthy bubble, is now literally isled on a great landfill decorated with Romero Britto’s artwork.


DANIEL LAKS (Rio de Janeiro/Rio de Janeiro)

João dizia que tortura era morrer na fila do hospital. Na verdade, nunca tinha enfrentado fila de hospital público. Ele e toda a sua família tinham plano de saúde. Era uma fala de revolta, mas isso foi antes. João agora tinha vergonha de dizer que apoiou ele, que votou nele, que fez campanha para ele. Hoje, João se sente enganado, queria um país melhor, ignorou os avisos e se deixou levar. A primeira coisa que o fez se sentir traído foi o aumento do preço dos planos de saúde. Aumentaram logo antes dele perder o emprego. Com tudo mais caro e ainda por cima desempregado, não tinha mais condições de pagar o plano de saúde do pai aposentado. Cancelaram o plano do pai pouco antes de descobrirem o câncer. Na sua revolta, João começou a participar de grupos de protesto contra o governo. Ele não sabe, mas neste exato momento, enquanto toma café da manhã, dois investigadores da polícia política estão a caminho da sua casa. Hoje João aprenderá na carne a diferença entre tortura e fila de hospital.

Joseph used to say that torture was dying waiting in line at a hospital. In actuality, he had never faced a line in a public hospital. He and his whole family had health insurance. That was a speech coming from outrage, but that was before. Joseph was now ashamed to say he supported him, voted for him, campaigned for him. Today, Joseph feels deceived, he wanted a better country, he ignored the warnings and let himself be carried away. The first thing that made him feel betrayed was the increased cost of health plans. It was increased right before he lost his job. With everything now more expensive and unemployed on top, he no longer had the means to pay for his retired father’s health insurance. They cancelled his father’s insurance plan, shortly before they found out about the cancer. In his revolt, Joseph started participating in protest groups against the government. He does not know it, but at this exact moment while he eats his breakfast, two political police investigators are on their way to his house. Today, Joseph will learn in the flesh the difference between torture and hospital line.


NATHALIE LOURENÇO (São Paulo/São Paulo)

A unha parecia maior no alicate do que quando ainda era parte do dedo. A cabeça de Chicho pensava esse tipo de coisa inútil quando a dor escoava por um momento. Era a última unha do pé e ele ainda resistia bravamente. Não tinha dito nada para o homem de capuz, que escolhia agora um novo instrumento como quem escolhe um lápis de cor.

– Quem é você?

Era um cabo com presilhas de metal denteadas, os dentinhos a lhe morder os mamilos com força. E então veio a corrente elétrica. Uma vez e outra vez, a pele sofrendo a queimadura de mil cigarros. O torturador deu mais um ou dois choques e voltou para a mesa de instrumentos.

– O que está planejando?

Era um vidrinho de ácido com conta-gotas, e a dor da primeira gota, na coxa, parecia quase suave depois de tudo, mas foi ardendo e espalhando, incontrolável. Na terceira gota a pele parecia borbulhar, dissolver. Pela primeira vez quis confessar. Confessar… o que? Se deu conta que até agora, era apenas ele, torturado, quem tinha feito perguntas. Outra gota caiu e Chicho recomeçou a gritar.

– Me diz o que você quer saber! Eu falo! Eu falo…

– Não precisa falar nada, fique tranquilo, já estamos acabando.

– Então por que? Isso tudo não é pra arrancar a verdade?

– Isso aqui? É só tradição. Eu não preciso arrancar nada de você. Não preciso que você me diga a verdade. A verdade é o que eu disser que é.

The nail looked bigger in the pliers than it did when still a part of the toe. Chicho’s head would think about this kind of useless things when the pain would subside for a moment. That was the last toenail and he would still resist, bravely. He had not said anything to the hooded man, who was now choosing a new instrument as if choosing a colored pencil.

– Who are you?

It was a cable with knurled clips attached to it, the little teeth biting his nipples with force. Then came the electrical discharge. Time and again his skin sustained the burns from a thousand cigarettes. The torturer shocked him again once or twice and went back to the instrument table.

– What are you planning?

It was a little glass bottle with a dropper containing acid and the pain of the first drop on the thigh, all things considered, felt almost smooth, but it was burning, and spreading, out of control. By the third drop the skin seemed to bubble up, to dissolve. For the first time he wanted to confess. Confess… what? He realized that up until now he, the tortured, had been the only one asking questions. Another drop and Chicho started screaming again.

– Say what you want to know! I will tell you! I will tell you…

– You do not need to say anything, relax, we are almost done here.

– Why, then? Is not all of this to wrench out the truth?

– This, here? It is just tradition. I do not need to wrench anything out of you. I do not need you to tell me the truth. The truth is what I say it is.


RENATA PY (São Paulo/São Paulo)

E os sonhos? Os sonhos a gente não controla, dizia Seu Zé. Era um homem que sempre devaneou esperança. Mas hoje não, acordou borocoxô, não quis nem comer. Disse apenas não desejar viver tanto para ver tamanha maluquice nesse mundão de meu Pai. Mirou pra longe da janela, ficou um tempo avantajado sem dizer uma única palavra. Comentaram até falta de lucidez. O pobre estava desacorçoado. Acontece com a realidade, ele desenterrou memórias que não gostaria. Tinha também consciência que não viveria para ver calamidade nenhuma findar. Sobre os sonhos? Roubaram, exclamou cansado.

What about dreams? We cannot control dreams, Mr. Joe used to say. He was a man who always daydreamed about hope. Not today, though. He woke up down in the mouth, did not even want to eat. He only said he did not wish to live so long to see such craziness in this big world of our Lord. He looked far out the window, stayed put for a while, without saying a single word. Lack of lucidity was even mentioned. The poor thing was desolate. It happens with reality, he unearthed memories he did not like. He was also aware that he would not live long enough to see the end of any calamity. What about dreams? Stolen, he exclaimed, in a tired tone.


RICARDO CELESTINO (São Paulo/São Paulo)

Do Congresso, só um nome. Do Senado, uma lembrança. O STF, um contexto. Tudo está mais fácil e acessível na surfaceciberespacial de uma rede imersiva de criptografados. A vida integra bolhas meta(in)flexíveis de reação. (Trans)penetração em um trânsito intransitivo de galerias e galerias de informação. Comoção! A biopraticidade de metadados da próxima diversidade. O paraíso em foco. Comoção. Balada do louco. Comoção. Olhar rouco de um povo néscio, integrado em poços (trans)continentais. O cobertor das vaidades. A volta de todos os choques e a (sub)missão opressiva do verde-amarelo.

From Congress, just a name. From the Senate, a memory. The Supreme Court, a context. Everything is easier and more accessible on the surface cyberspace of an immersive, encrypted network. Life integrates meta(in)flexible bubbles of reaction. (Trans)penetration in an intransitive transit of galleries and galleries of information. Commotion! The bio-practicality of metadata of the next diversity. Paradise in focus. Commotion! Madman’s ballad. Commotion! The rough gaze of a foolish people integrated in (trans)continental wells. The blanket called vanity. The return of all of the shocks and the oppressive (sub)mission of green-and-yellow.


SÉRGIO FANTINI (Belo Horizonte/Minas Gerais)

Só quando o milésimo cidadão-de-bem arrependido foi imolado em praça pública pelo Ministério da Eugenia, as pessoas começaram a apagar as suásticas que haviam pintado em suas casas. A única que permanece é aquela riscada a canivete no corpo da garota gaúcha.

Only when the thousandth remorseful good citizen is immolated in public by the Ministry of Eugenics, people will begin to remove the swastikas they had painted on their houses. The only one that will remain is the one scrawled on the gaucho girl’s body with a pocket knife.


SILVANA GUIMARÃES (Belo Horizonte/Minas Gerais)

Segundo turno, casa cheia, a fila enorme na seção eleitoral. Ele custou a esperar sua hora. Vestia calça cáqui e blusa amarelo-ouro, a bandeira do Brasil sobre os ombros. Quando chegou a sua vez, entrou marchando na sala. Antes de votar, bateu continência para a urna, lascou um “pela moral e bons costumes” bem alto e saiu de lá olhando por cima das pessoas. Semana passada, sua foto apareceu no jornal. Pederasta, pego em flagrante, quando obrigava o menino a lamber suas bolas, na praça, atrás da igreja. Antes de entrar na cadeia, ouviu do delegado: — Ordinário, marche!

Second round, full house, long line at the polling station. He had a hard time waiting for his turn. Wearing khakis and a golden-yellow shirt, he had the Brazilian flag over his shoulders. When it was his turn, he entered the room, marching. Before casting his vote, he saluted the ballot box, dropped a loud and clear “for morality and good habits”, and left the room looking holier-than-thou. Last week, his picture was in the papers. A pederast, caught in the in the act, while forcing a boy to lick his balls in the square behind the church. Before walking into the jail, he heard from the chief of police: – You, shameless, march!


SILVANA MENEZES (Belo Horizonte/Minas Gerais)

Pai e mãe aprovavam o novo governo. O filho agora  mantinha distância da escola, das drogas, dos pervertidos, das vadias, da vida lá fora. Eles podiam ficar 24 horas colados no garoto, que mantinham asseado. A única literatura da casa era a Bíblia Sagrada. O menino não reclamava, embora achasse as historinhas de Jesus meio repetitivas. Aos domingos tocavam teclado e cantavam música gospel sertaneja. Tudo parecia bem para a família longe dos pecados, protegida por Deus e pela Taurus. Até que um dia o garoto tirou a arma do pai do armário e deu um tiro na cabeça. Ao seu lado, boiando em sangue, foi encontrado um papel escrito “eu gosto é de menino”.

Father and mother approved of the new government. The son now kept away from school, from drugs, from perverts, from sluts, from the life out there. The parents could stay glued to the boy around-the-clock, whom they kept clean. The only piece of literature in the house was the Holy Bible. The boy would not complain despite thinking that Jesus’s little stories were a little repetitive. On Sundays they would play the keyboard and sing country gospel songs. Everything seemed well for the family, away from sin, protected by God and by Taurus. Until one day the boy took his father’s gun out of the cabinet and shot himself in the head. Next to him, floating in blood, they found a piece of paper with the words “I like boys”.


SÔNIA NABARRETE (São Caetano do Sul/São Paulo)

Enquanto apoiava a tortura, esqueceu-se de que a filha não se conformava com a derrocada da democracia. Agora não tem nem ao menos um corpo para enterrar. Da moça só restou uma foto no celular. Tão bonita.

While supporting torture, he forgot his daughter would not accept the collapse of democracy. Now, he does not even have a body to bury. Of the girl, only a picture on the cell phone was left. So pretty.

—translated by beta guedes cummins
Adriane Garcia was born in Belo Horizonte/Minas Gerais, Brazil, in 1973. She is a historian, civil servant, art educator, and actress. Garcia writes poetry, young adult literature, chronicles, short stories and dramaturgy. Winner of the Helena Kolody National Literature Award with the poetry book Fábulas para adulto perder o sono. She also published O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015)and Garrafas ao mar (Penalux, 2018).
Sérgio Fantini is a Brazilian poet, short story writer, novelist, and voice of a literature of resistance and independence from the rules of the market. He has published in magazines and anthologies such as Contos Cruéis, Cenas da Favela, Rock Book, 29 de abril – o verso da violência e 90-00 – cuentos brasileños conteporáneos and Lula livre Lula livro, among others. First published in 1979, Fantini keeps a keen eye on human relations; he offers reflections on the subversive aspects of social relationships, admitting certain affinities with Existentialism and Socialism. Besides Lambe-Lambe, he also published the books Diz Xis, Cada Um Cada Um, Materiaes, Coleta Seletiva, A ponto de explodir, Camping Pop, Silas, A Baleia Conceição, Novella and O município de Tormenta.