RÉGIS BONVICINO
MAKE IT OLD
Da estação de trem à ponta da orla, em poucos minutos. A estátua de bronze de Colombo em uma praça. Colombo mira a América. Uma gaivota devora um peixe. Africanos na calçada passam bolsas. Os sinos de uma igreja. Neblina na montanha. Nuvens ainda carregadas da tempestade de ontem. O temor do siroco. Galhos e garrafas de plástico na areia áspera da praia, em seu ponto mais côncavo. Uma garota de topless sobre o cascalho. Sol de verão. A signora me diz: “casa pink” e aponta com o dedo. O vento toca na palmeira, um canteiro de miosótis vermelho. Casas ao alto: creme e ocre. A baía é uma pequena concha. Talvez eu tenha topado com Bertrand de Born e seu alaúde antes de chegar ao Palazzo Baratti, no lungomare. Ou com outra Palmeira. Talvez tivesse sido melhor fazer yoga aqui: montanhas ajardinadas, casas de cores várias. Ondas de rádio, uma voz irrompe: “Uma gangue de judeus: Lehman Brothers, em Nova Iorque, Rothschild, e sua dinastia bancária na Europa, os dois puseram de joelhos a população endividada e fizeram a guerra. Hiperusura: milhões de jovens sem emprego, milhões de analfabetos adultos, milhões de feridos ou mortos em acidentes de trabalho, milhares de crimes violentos por ano, milhares de camelôs: óbvio The Uhnited States ov America”. O cara dizia essas coisas ao som da ópera “Mefistófeles”, de Arrigo Boito. Uma guerra já é demais, duas guerras então: “O secretário do tesouro Henry Morgenthau, o avaro, e seu realismo abjeto, usurpa o dinheiro dos americanos para, depois de subornar o Embaixador, emprestá-lo a um país insolvente como o Brasil”. Trombetas. Um Fiat Torpedo conversível passa: talvez Mussolini acene para a bela Olga Rudge.. Olga, a violinista, amante do cowboy bruto. O cowboy vocifera: “O ataque esperado a Pearl Harbor, no inverno de 1941: subterfúgio de Franklin Delano Roosevelt para aderir a Churchill e investir contra o Eixo”. Já em Xangai um recruta de Tóquio expunha cabeças de chinesas nas ruas. Mãe decapitada segurando bebê morto não era uma peça lírica, essa porra de ideogramas de Li Po. Enquanto saía fumaça das chaminés dos crematórios, você encontrava ainda Ticiano nas esquinas, sempre ensimesmado com o Duce: “Qualquer ato válido que se pratique, se pratica em HOMAGE a Mussolini e Hitler. Todo impulso no sentido do preço justo, do controle do mercado, é um ato de HOMENAGEM a eles. Não pretendo convencê-lo a ser um ‘convertido’. Hitler é ou não é horrível? ”. De espingarda em punho num estúdio: “O inimigo é o capital. O débito com acúmulo de juros. Abutres. Sórdidos. Soltam fogos!”. O jet set se encheu da cidade na década de 1920, logo meio decaída. Para cá vieram os artistas. O cowboy almoçava com Dante no Gran Caffè. Queria saber sobre um incerto poeta-magistrato siciliano, Pietro della Vigna, lançado por ele na selva dos suicidas, no sétimo círculo do Inferno, que se matou em virtude do castigo – cegueira a ferro quente – imposto por suspeita de trair o Imperador Federico II. Vigna: árvore-cadáver à boca das harpias vizinhas. Dante tenta absolvê-lo da accusatio de traição. A meretriz da corte “infiammò contra me li animi tutti”. Mas vaticina: o suicídio lhe subtrai a inocência aos olhos do mundo. Cadelas negras famintas farejam ossos novos. Raquetes, uma rede. À tarde, com Homero, o cego, na quadra de tênis. Cânticos na orla prometiam mortes. Os textos lidos na Rádio Roma estouravam os tímpanos dos espias dos Aliados: “O império da usura nunca teve fé e fronteiras. O arcebispo submisso e o rabino de Londres trabalham para reerguer um credo em defesa dos agiotas torpes”. O legislatore, íntimo das crateras agrícolas da lua, com pose de sábio: “O mero ímpeto do rabino, sem domicílio fixo, dissipa os valores culturais hierárquicos rígidos – instabilità”. O franco-atirador dixit: “O sistema econômico americano induz o rebanho de cordeiros a comprar o que não pode pagar. Consequência: o homem comum deixa de ter sua própria casa. Um novo crédito, mas sem juros: a Itália faz isso. A Alemanha faz isso. A Rússia comunista não faz isso”. A coroa de colinas, firme, entre os canais, subiu à sua cabeça em desacordo com os estilhaços nômades de seus Cantos. No centro histórico, a Confraternita “Mortis et Orationis”, árvores, tensão. Um M, em mdf, pintado de branco, acima da porta verde: os confrades providenciam, há séculos, enterro digno para indigentes e mendigos; você poderia ter sido um deles no fim da guerra. Marcas de balas de metralhadoras no frontispício. Os nazis ocuparam a cidade. O som do sino de outra igreja rebate nas paredes. Bombas ecoam no mar, talvez tanques. Antes de chegar ao Palazzo Baratti, vejo partidários da CasaPovnd, bandeiras com tartarugas: o casco como símbolo de casa. Os adeptos uivam na rua o refrão de uma faixa de uma banda neofascistapunk: “Chacinadocinto”: fiveladas na cabeça, chicotadas nas costas, o pino da fivela no olho do cu. Gritam: “A Itália aos italianos de sangue”, “Com usura homem nenhum há de ter casa de boa pedra”. É um rock around the clock. Em seguida, deixam uma coroa de louros na casa de Olga Rudge, no topo de Sant’Ambrogio, onde ele foi preso pelos partigiani. Um quebra-quebra com regras. La guerra è brutta. Ao despertar, rente à boca do esgoto da cela, se levanta, exangue, abraça um reflexo, mastiga frases. Talvez mastigue fezes. Uma águia sobrevoa a fileira de jaulas do presídio. A CasaPovnd, um partido neofascista, a merda fascista, agora à revelia do Chief Executive Officer, o CEO crédulo, do oeste selvagem de Idaho e dos subúrbios de Filadélfia. O trato direto da coisa: apenas o útil, apenas o trigo. Uma voz, alta, pergunta na orla: “Há crimes que ninguém perdoa?” Chego ao Palazzo Baratti. Um edifício art noveaux azul, janelas amarelo opaco, duas em rosa-pálido. Palazzo junto ao hotel Vesuvio. Um tapete seca numa das varandas. Palazzo Baratti, onde ele morava, no ático, com a esposa Dorothy Shakespear”. Entre a janela mais baixa e o arco do beco, uma placa de mármore com um trecho de um de seus poemas. Em outras palavras: “Mas afirmar o fio de ouro no padrão (dos mosaicos de Assunta, Torcello, Veneza) / al Vico dell’Oro (nesta vila do golfo do Tigullio). / Confessar o erro sem perder o caráter: / Caridade eu cultivei às vezes, / Um pouco de luz, como luz de candeia / Incapaz de fazê-la fluir do. / para voltar ao esplendor”. Um garoto amarra o tênis da Nike. Na saída de trás da passagem para a via Marsala uma loja: Intimissimi. Tridente. Netuno, cavalos, o cavalo trota no asfalto. Barcos a passeio, barcos de pesca à vista. A beleza não existe. O vento leva as folhas secas da viela. As duas guerras: captou, como nenhum outro, o colapso da traditio e da arte. A Rapallo puoi trovarlo.
MAKE IT OLD
From the train station to the edge of the sea, in a few minutes. The bronze statue of Columbus in a square. Columbus faces America. A seagull devours a fish. Africans on the sidewalk pass bags. The bells of the church. Mist on the mountain. Clouds still loaded from yesterday’s storm. The fear of the sirocco. Twigs and plastic bottles in the rough area of the beach, at its most concave point. A topless girl about the rubble. Summer sun. A lady says to me: “pink house” and points with a finger. The wind touches the palm tree, a flowerbed of red forget-me-nots. Houses at the top: cream and ocre. The bay is a small shell. Maybe I have stumbled across Bertran de Born and his lute before arriving at the Palazzo Baratti, near the oceanside promenade. Or with another Palm. Perhaps it would have been better to do yoga here: landscaped mountains, houses of various colors. Radiowaves, a voice errupts: “A gang of jews: Lehman Brothers, in New York, Rothschild, and their banking dynasty in Europe, the two put the indebted population on their knees and started the war. Hyperusury: millions of youths without employment, millions of illiterate adults, millions injured or killed in work-related accidents, thousands of violent crimes per year, thousands of street vendors: obviously The Uhnited States ov America”. The guy said these things to the sound of the opera “Mephistopheles,” by Arrigo Boito. One war is already too much, two wars then: “The secretary of the treasury Henry Morgenthau, the miser, and his abject realism, usurps the Americans’ money, after bribing the Ambassador, lending it to an insolvent country like Brazil”. Trumpets. A convertible Fiat Torpedo passes: perhaps Mussolini waves to beautiful Olga Rudge. Olga, a violinist, lover of the cowboy brute. The cowboy vociferates: “The anticipated attack on Pearl Harbor, in the winter of 1941: Franklin Delano Roosevelt’s subertfuge to join Churchill and invest against the Axis”. Meanwhile in Shanghai a recruit from Tokyo exhibits Chinese heads in the streets. The beheaded mother holding her dead baby was not a lyrical piece, these shitty ideograms of Li Po. While smoke left the chimneys of the cremetoriums, you would still find Titian at the corners, always absorbed in the Duce: “Any valid act that is practiced, is practiced in HOMAGE to Mussolini and Hitler. Every impulse in terms of the fair price, in control of the market, is an act of HOMAGE to them. I do not intend to convince you to become a ‘convert’. Is Hitler horrible or not?”. The shotgun gripped in a studio: “The enemy is capital. The debt with accrued interest. Greedy. Vultures. They set off fireworks!”. The jet set filled the city of the 1920’s, already halfway decayed. The cowboy had lunch with Dante at the Gran Caffè. He wanted to know about a dubious Sicilian poet-magistrate, Pietro della Vigna, who was thrown into the forest of suicides by him, who took his own life in the seventh circle of the Inferno – blinded by the hot sword – imposed on suspicion of betraying Emporer Frederico II. Vineyard: tree-corpse to the mouths of neighboring harpies. Dante tries to absolve him of the accusation of treason. The court prostitute “infiammò contra me li animi tutti”. But he predicts: suicide subtracts innocence from the eyes of the world. Starving black dogs sniff new bones. Rackets, a network. In the afternoon, with Homer, the blind one, on the tennis court. The texts read on Radio Roma burst the eardrums of the Allies’ spies: “The empire of usury never had faith and borders. The submissive archbishop and the rabbi of London work to rebuild a creed in defense of the dishonest moneylenders.” The legislature, intimate of the agricultural craters of the moon, with a sage’s posture: “The mere impetus of the rabbi, without fixed abode, dissipates the rigid cultural hierarchical values – instabilità” The sniper dixit: “The American economic system induces the flock of sheep to buy what it cannot afford. The common man stops owning his own house. A new credit, but without interest: Italy does this. Germany does this. Communist Russia does not do this.” The crown of hills, firm, between the canals, rose to his head in discord with the nomadic shards of his Cantos. In the historic center, the Confraternita “Mortis et Orationis”, trees, tension. Machine gun bullet marks in the frontispiece. The nazis occupied the city. The sound from the bell of another church reverberates off the walls. Bombs echo in the sea, maybe tanks. Before arriving at the Palazzo Baratti, I see supporters of CasaPound, flags with turtles: the shell as a symbol of home. The adherents howl in the street a refrain from a neofascist punk band: “Chacinadocinto”: fist of buckles, lashes on the back, the buckle’s pin in the asshole’s eye. They shout: “Italy for the Italians of blood”, “With usury no man shall have a house of good stone”. It’s a rock around the clock. A fistfight with the rules. Afterwards, they leave a laurel crown at the house of Olga Rudge, on top of Sant’Ambrogio where he was arrested by the partigiani. La guerra è brutta. On awakening, close to the mouth of the cell’s sewer, he rises, exhales, embraces a reflex, chews phrases. Maybe chews feces. An eagle flies over the row of prison cages. The CasaPound, a neofascist party, the fascist shit, now approved by the Chief Executive Office, the credulous CEO, of the Wild West of Idaho and of the Philadelphia suburbs. Getting right to the point of it: only the useful, only the wheat. A voice, loud, asks at the border: “Are there crimes that no one forgives?” I arrive at the Palazzo Baratti. A blue art nouveau building, opaque yellow windows, two in ashen pink. Palazzo adjoining the Hotel Vesuvio. A dry rug on one of the balconies. Palazzo Baratti, where he lived, in the attic, with his wife Dorothy Shakespear. Between the lower window and the arch of the alley, a marble plaque with a passage from one of his poems. In other words: “But to affirm the gold thread in the pattern (of the mosaics from Assunta, Torcello, Venice) / another Vico dell’Oro (in this villa on the gulf of Tigullio). / Confess the error without losing character: / Charity I cultivated at times / A little light, like candle light / Incapable to make flow from it. / to return to splendor.” A boy ties Nike tennis shoes. In the exit behind the passageway to the Marsala path a shop: Intimissimi. Trident. Neptune, horses, the horse trots on the asphalt. Passenger boats, fishing boats in sight. Beauty does not exist. The wind carries the dry leaves from the alley. The two wars: he caught, like no other, the collapse of traditio and of art. A Rapallo puoi trovarlo.
Rapallo, 2018