lúcio cardoso

LÚCIO CARDOSO

AMANHECER

A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sôbre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.
E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a musica das fiôres que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.
Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo côr-de-rosa
desaparecendo sugados pela treva.


DAYBREAK

The night inside me
turns in my blood.
I feel throb in my mouth
the blind pupils of the moon.
I feel the stars; like fingers,
they move the solitude I walk.
Soon the perfume of poetry
comes to my closed, quivering eyes.
I hear the music of things awoken
on the black body of the earth
and the voice of the distant wind
and the voice of palm trees open in rays
and the voice of the traveling rivers.
And the night is inside me.
Like a bird, my dream
spreads its wings in the heart of the shadow.
I hear the music of flowers as they fall,
the thunder of passing clouds
and my voice —, my voice rises
like a prayer on the empty plain.
Then I feel the night flee from me.
I feel the night flee from all humanity.
And the sun coming forth on the rump of the sea,
and the arcing clouds which fill the sky
like great roseate steeds of fire
all disappear, sucked into the dark.


A CASA DO SOLTEIRO

A Pedro Gallotti
(Por oferecimento de Jayme Bastian Pinto)
A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia,
muros escorrem como verdes contornos
e colunas de mármore frio guardam seus limites.
Há quatro anjos sentados no teto solene e casto
e com luzes vermelhas, entre ciprestes,
sondam os anjos – guardiões – os fundamentos
que se apóiam com gemidos nos porões e adegas,
no rio escuro e na água morta
de correntes que foram vencidas – despedaçadas.
A casa do solteiro é cor de chama,
de silêncio aflito e aurora sem contemplação.
São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
são traves de cristais e de luxúria.
Há um descampado em torno: nostálgicos,
cemitérios se evaporam no crepúsculo
e ruínas de azul e ópio cintilam,
entre guitarras e navalhas abandonadas.
Há flores quentes e de carne, flores mesmas,
cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes
quentes de sofrimento e decomposição.
A casa do solteiro é o sol posto[,]
quando perdemos a fé e o amor se foi,
o começo da noite quando não há horizonte,
a quilha partida e a lança sem gume.
A casa do solteiro se abre como a música,
é triste e macia, fechada como a do príncipe,
fechada, entre janelas longas de ferro,
enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.
Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,
tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,
os móveis andam, e nos olhares estranhos,
como róseos desmaios e garras de ultraje.
Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,
abraçando manequins de aço, corpos de rampas
em madrugadas de rompimento e viagens.
Esqueceriam as malas – e iriam muito altos,
olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.
E estão quietas: jogam as cartas verdes
e suspiram impossíveis paisagens de mar.
Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,
com quatro rosas voltadas para o mar,
a mais escura é que os guia. Rosas frias,
de pétalas aguçadas e de mortal traição.
A casa do solteiro é que eles elegeram,

ilha, jangada no silêncio do céu,
vasto navio abandonado e cheio de tormenta,
escândalo e aflição – a casa do solteiro flutua
50 e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,
chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,
tudo – neste silêncio único onde existe
como uma grande alma sozinha batendo
na infindável noite que não se acaba
e nem se acabará NUNCA,
A CASA DO SOLTEIRO.


THE BACHELOR’S HOUSE

To Pedro Gallotti
(by way of Jayme Bastian Pinto)
The bachelor’s house is high;
its walls are built of anguish;
its walls course their green verges;
cold marble columns guard their sides.
Four angels sit upon the chaste and solemn roof;
with red lights, among cypresses,
the guardian angels fathom the foundations
supported by groans in basements and cellars,
in the dark river, in the dead waters
of broken chains overthrown.
The bachelor’s house is the color of the blaze,
of aggrieved silence and a dawn uncontemplated.
These are stones of crime and agony,
these are black stones of delirium and remorse.
These are hard shafts of aluminum and fever,
these are crossbeams of crystal and lust.
There is a clearing round about: nostalgic
cemeteries evaporate at twilight
and opium-blue ruins flicker
amid guitars and abandoned razors.
There are flowers hot and fleshy, flowers indeed,
color of whiskey, of bruised peaches, roots
hot with suffering and decomposition.
The bachelor’s house is the setting sun,
when we lose our faith and love has gone,
the onset of night where no horizon exists,
the split keel and the dulled spearhead.
The bachelor’s house opens like music
sad and soft, ending, like the prince’s,
ending, in broad iron windows,
while outside the wind roars and lightning falls.
There is no dizziness, no space, no rest,
everything transpires as if we were slowly dying,
the furniture moves, and in the strange eyes of others,
like roseate swoons, like talons of outrage.
If not so clear-sighted, they would die of wrath,
embracing the inclined bodies of steel mannequins
deep in the nights of rupture and journeys.
They forgot their baggage – and they went so high
while they watched the kitchen gardens
where cutthroat forests grow
And they are still: they play the green cards,
they sigh impossible seascapes.
Four great angels keep vigil high on the roof,
with four roses facing the sea;
the darkest is their guide. Cold roses,

with whetted petals of mortal betrayal.
The bachelor’s house is chosen by them,
an island, a raft in the silence of the sky,
a vast ship abandoned and charged with storm,
scandal and grief — the bachelor’s house floats,
the bachelor’s house, like a vast
curtain of blood and damnation, weeping
afternoons, bodies, the lost heart,
and all else — in this one sole silence where
it stands like a great soul knocking
all this endless night, this night which
will not end, no, NEVER,
THE BACHELOR’S HOUSE.

—translated by chris daniels
Lúcio Cardoso was a Brazilian poet, novelist, playwright, journalist, filmmaker and painter who lived most of his life in Rio de Janeiro where he was active in the artistic and literary culture until his death in 1968.